Iniciar sesión

Reevo

Uma Utopia Que Se Fortalece

    Tiago Miguel Knob
    Por Tiago Miguel Knob - 12/07/2017
    Uma Utopia Que Se Fortalece

    Versión en Español

    Fui até lá. Tive que ir. Nunca é agradável. A espera sempre é grande. Uma hora, duas horas sentado, às vezes três, aguardando ser chamado, mesmo com hora marcada. Naquele dia, foram cerca de três horas. Além disso, o ambiente é venenoso.

    São nesses locais, no Brasil, que os roubos maiores acontecem. Onde a corrupção ganha rosto, voz, cheiro. Onde os contratos são assinados e os interesses escondidos. É onde se paga o investimento da campanha. Alguns não vendem apenas a alma para estarem em locais assim. Vendem também a mãe. O custo, portanto, é alto e a cobrança vem rápida. É, portanto, em locais como esse que se paga, com o que é do povo, as dívidas feitas para ali estarem. Mas tive que ir. Era uma de minhas responsabilidades. Em nossos projetos a gente tenta dividir funções, tenta entrar em consenso. Nem sempre conseguimos. Mas a responsabilidade de ir ali, naquele momento, com um pouco de insistência de minha parte, foi entregue a mim. Não só a mim. Rodrigo chegou uns quarenta minutos depois. Deu tempo para a gente conversar bastante ainda antes de sermos encaminhados para a sala de quem diz ter o poder de fazer as coisas acontecerem.

    Grafite de Marcos Fernandes

    Era a nossa última reunião antes do fim do prazo que permitiria a manutenção das atividades. Ele disse tudo o que queríamos ouvir. A conversa foi longa. Falou da importância e da qualidade do projeto, das crianças, dos jovens. Disse acreditar que quanto mais ações das que realizamos, menos crianças nas ruas, menos adolescentes nas fundações casa, menos pessoas nas prisões. Uma visão bem deturpada e estereotipada. Burra, até. Mas diante das suas limitações, ignorâncias e incompetências que a gente já conhecia bem, optamos por não argumentar e saímos, de certa forma, otimistas. Como bem sabemos hoje, erramos. A mentira é escancarada. Diferente de Pinóquio, o que lhe cresceram ainda mais foram as orelhas[1].

    Cento e cinquenta crianças, jovens, mães, pais, pessoas da comunidade participavam dos mais de nove projetos dos seis espaços permanentes criados pela Cidade Escola e por todos estes que ajudaram a construir a Casa Amarela e a Casa Azul, como nomearam as crianças: dois prédios públicos antes abandonados em um dos territórios mais castigados da Cidade do Anjo. Com o pouco apoio da antiga administração pública conseguimos reformar o primeiro, a Casa Amarela, que há cerca de trinta anos servia como ponto para a prostituição e consumo de crack entre crianças e adolescentes e, fazer dali, um Espaço Permanente da Criança e de Recuperação Ambiental do Território do Guapé. Um espaço que agora pulsava vida, cultura, arte, consciência política. A Casa Azul, antes fechada e que servia para um museu que não acontecia, foi a base dos Espaços Permanentes da Mulher, da Juventude, de Artes e de Construção Democrática. A decisão dias depois de nossa reunião do Prefeito eleito com outras promessas foi cortar os investimentos de todas essas atividades que envolviam e foram criadas, portanto, por mais de 150 pessoas.

     

    No dia seguinte à informação enviada a nós de que a atual administração pública de São Miguel Arcanjo cortaria os investimentos púbicos dos nossos projetos, as Mães das crianças e jovens envolvidos decidiram ir à prefeitura questionar o prefeito sobre sua decisão. Acompanharam as Mães as crianças, jovens, educadores e educadoras da Cidade Escola. O que o meu filho tem pra fazer agora? Aonde eu deixo ele pra ir trabalhar? Na rua, pro tráfico levar? Perguntavam as mães. Foram cerca de duas horas de questionamentos, de indignação e de luta. A única resposta do prefeito era a falta de dinheiro. Alguns dias depois, foi anunciado pela mesma prefeitura, o aumento do gasto público com festas no município. Uma justificativa, portanto, mentirosa.

    Os questionamentos seguiram. Depoimentos de várias partes do Brasil, do Equador, de Portugal, da Universidade Federal de São Carlos e da Universidade do Sul de Santa Catarina, da Rede Nacional de Educação Democrática, de jovens, doutores (as), estudantes, chegaram via internet em solidariedade a nós, questionando a decisão do poder público de desmantelar uma política pública em função da infância, da juventude e da comunidade. A população local também se mobilizou.

     

    Em 24 de abril de 2017, assim, a Câmara Municipal estava lotada com todos os acentos ocupados e pessoas de pé se encaixando e excluindo todos os espaços vazios para apoiar e ouvir o que tínhamos a dizer. As Mães da Casa Amarela (movimento criado por elas), as crianças, jovens, e muita gente da sociedade são-miguelense se fez presente em sessão ordinária dos vereadores para a gente se posicionar diante das autoridades públicas e da comunidade da Cidade do Anjo. Crianças falaram em tribuna questionando o fim da Casa Amarela. Alguns vídeos em solidariedade a nós foram apresentados; a justificativa de corte de orçamento questionada (o investimento nos projetos já era muito baixo); e um convite foi feito à população que se sente responsável pelos estragos sociais produzidos em nossa cidade. O apelo para que conseguíssemos os recursos capazes de manter as atividades foi atendido pela população enquanto ignorado pelos que foram eleitos pelo povo.

     

    Marcamos reuniões, recebemos doações de todos os tipos, conversamos, fizemos alimentos para a venda, um evento cultural e político com diversos artistas locais, carnês para doações mensais, comunicado ao Ministério Público e, depois de algumas semanas ocupando ainda a Casa Amarela e a Casa Azul contra a vontade do prefeito, decidimos - mães, crianças, jovens e educadorxs -, buscar um espaço novo, nosso e independente. Encontramos! No mesmo bairro, muito próximo de onde estávamos, criamos a “Casa Verde, Território Livre”. E ali seguimos construindo nossos sonhos, nossa utopia de vida digna para todxs; de construção de educações que nos façam sentido. Que nos mostre que não há outra alternativa a não ser lutar por aquilo que a gente acredita: ou a gente imagina, sonha com um bairro, uma cidade, um mundo que permita com que a criança, a gente, possa viver e viver bem, e caminha para construí-los aprendendo a construir, ou permanecemos impedidos de ser. Não há escolhas.

    Nossa Utopia, assim, se fortalece. Mas precisamos, como sempre, do apoio de toda a gente. São Miguel Arcanjo é uma das cidades mais castigadas do Estado de São Paulo, e a luta para reverter essa realidade só está começando. Entra em contato com a gente. A gente precisa do seu apoio e queremos caminhar ao lado de quem acredita que a construção de um outro mundo é possível.

    Site: http://www.facebook.com/cidadeescolasma

    P.S.: as Mães, agora, são da Casa Verde.

    Tiago Miguel Knob

    Tiago Miguel Knob

    Descripción

    Tiago Mi é doutorando em Pós-colonialismos e cidadania global do Centro de Estudos Sociais da Universidade de Coimbra e Mestre em Ciências com foco em Pensamento Latino-americano pela USP, São Paulo....